Se você não busca desafios os desafios vão te buscar e por isso mesmo, em 2018, aproveitei uma oportunidade, até então inusitada, para participar do FEAL Fundamentos da educação ao ar livre, um curso intensivo e intenso oferecido pela https://www.outwardbound.org.br.
Mais ou menos ciente da proposta do curso algumas inseguranças me assombraram nos meses que antecederam sua realização. De forma muito geral realizaríamos uma travessia de maneira totalmente autônoma, não por trilhas consolidadas, mas na grande maioria dos percursos cruzando áreas sem trilha. Para tanto foi preciso carregar nas costas todo material de acampamento (barracas, isolantes, sacos de dormir, equipamentos de cozinha,...), alimento para mais de 10 dias e nossos itens pessoais. Isso tudo correspondia a peso perto de 25kg para os rapazes e uns 20kg para as meninas. Também sem usar papel higiênico, sabonete, sem nenhuma fonte de energia artificial (a não ser a dos fogareiros), sem comunicação (nem GPS),...
Todo o conjunto foi desafiador, mas hoje que falar em especial sobre o peso necessário para nossa sobrevivência, por duas semanas, que foi carregado nas nossas mochilas.
Antes do início da intensa experiência uma das questões que mais me preocupavam era justamente ter que carregar tanta coisa. Temia que este peso todo pudesse me machucar ou piorar algumas das dores que já me acompanhavam antes. Como minhas articulações aguentariam (ombros, quadris, tornozelos)? Em especial como minha coluna aguentaria?
O peso da mochila de 85 litros, que me ajudaram a montar no primeiro dia, correspondia a 1/3 do meu peso, cerca de 33% do meu peso corporal. Já havia sido instruído pelos intelectuais medrosos de plantão que um ser humano saudável não poderia carregar mais que 10% a 15% do seu peso nas costas. Baseado no medo dos outros eu já havia planejado que sofreria e arcaria com o resultado deste sofrimento.
Este medo, tenho certeza, aumentou o grande desconforto quando coloquei a tal mochila a primeira vez nas costas. Porém eu fizera os meus votos de sofrimento e seguiria até o final com a experiência. De cara percebi que uma das grandes dificuldades era vestir a mega mochila, tanto que às vezes preferia não tirá-la das costas se o tempo de descanso fosse curto. Nas primeiras horas eu não parava de me questionar que loucura me levara a buscar e pagar por isso. Mas nosso corpo não nasceu ontem, ele foi aperfeiçoado por milhares e milhares de anos. Ele é um robusto e refinado produto da evolução biológica e, para quem acredita, da infinita sabedoria de Deus. Por isso mesmo, embora seja preguiçoso e reclamão, quando desafiado, ele costuma nos surpreender. No geral, se desligamos um pouco a mente tagarela, guardiã de todas as informações úteis e na maior inúteis, a grande incentivadora das ansiedades, medos e angústias, nosso corpo entra em seu modo de inteligência instintiva positiva e se adapta as situações bem melhor do que fantasiávamos. Resultado disso é que, já no segundo dia, a mochila ficou menos incômoda e depois do terceiro nem pensávamos mais no assunto.
Findadas as duas semanas minha coluna não doeu mais que o normal, minhas tendinites não tiveram nenhuma piora, na verdade melhoraram. Eu estava mais magro e mais forte! E, o mais importante, eu estava mais seguro de mim, mais confiante e pronto para outros desafios. Refletia como havia sofrido antecipadamente sem necessidade e o quanto foram tolas as minhas inseguranças iniciais.
Outra experiência com peso nas costas mais longa, mas também muito gratificante, foi que antes da minha filha completar 1 ano adquiri uma mochila para carregá-la na cidade e nas trilhas. A mochila vazia pesava em torno de 3,5kg e a Elisa (com 8 meses) cerca de 8kg. Então comecei com uns 12kg e fui até uns 23kg quando ela já havia passado dos 5 anos de idade. Com frequência eu saía caminhar com ela pela cidade para treinar um pouco e também para que ela tivesse esta atividade de estar passeando pelo mundo com algum conforto e liberdade. Mas o ponto alto eram as trilhas que pude apresentar a ela ainda muito pequena. Eu me sentia feliz e orgulhoso desfilando com ela nas costa. A motivação era maior que o desconforto, tornando-o secundário e administrável.
Todo este rodeio só para chegar até aqui e falar sobre mais um medo que cresce entre alguns círculos de pessoas que fazem trilhas na natureza: O medo da mochila pesada! Percebo que, assim como todos os medos, ele é contagioso e se alastra com rapidez.
O Google é capaz de trazer em um segundo uma miríade de artigos e "estudos" e, na maioria, opiniões vulgares que vão dar razão aos medos. Dezenas de "especialistas" (pessimistas/fatalistas) que vão mostrar tudo que pode acontecer de mal se você se expor a estes riscos "reais". Porém, conheço algumas pessoas que foram "condenados" por especialistas a não poder nem subir escadas, mas que na atualidade sobem montanhas.
"Assegurou que não podia ainda morrer. Perguntaram-lhe então se viver ou morrer dependia da sua própria vontade. Respondeu afirmativamente. Numa palavra, Queequeg acreditava que se um homem se propunha a viver, uma simples enfermidade não o podia matar, e que só poderia ser morto por uma baleia, um furacão, ou algum outro agente destruidor violento, ingovernável e sem inteligência. Existe uma diferença notável entre o homem selvagem e o civilizado; ao passo que o homem civilizado, enfermo, precisa de vários meses de convalescença, o selvagem cura-se quase completamente, num só dia." Herman Melville - Moby Dick, vol II
O maior medo humano é o medo da morte, mas o medo que mais estrago faz ao ser humano é o medo de viver. Atualmente, mais do que nunca, cresce e se alastra o medo de viver. Por medo de viver as pessoas estão cada vez mais se abrigando no mundo virtual e quanto mais se virtualiza a vida, mais frágil ela se torna. Um corpo não utilizado em todo o seu potencial, pouco a pouco, qual uma ferramenta (que é), vai ressecando, enferrujando, perdendo flexibilidade, vai perdendo a utilidade e cada vez mais também precisaremos de aditivos e aparatos tecnológicos para mantê-lo em funcionamento.
"Aquilo que chamamos de doenças da civilização resulta da tentativa dos seres humanos de tornar nossa vida mais confortável ao arrepio do nosso próprio interesse, uma vez que o confortável é o que fragiliza." Nassim Taleb - Antifrágil
É uma verdade difícil de engolir, mas o fugir do desconforto físico e psicológico a curto e médio prazo garantirá uma vida amena e medíocre, todavia, repleta de desconforto espiritual, a longo prazo. E quando falo espiritual não estou restringindo a uma ideia religiosa de espírito, estou falando do espírito humano de crescimento, de busca de sabedoria, de superação dos problemas morais. Estou falando de uma vida feliz que quase nunca significa uma vida "confortável". Como substituta de uma vida desafiadora e feliz estamos consumindo uma vida de prazer transitório, de amortecimento das dores físicas e entorpecimento das dores psicológicas através substâncias químicas e, hoje em dia, por meio do embotamento da consciência humana causado pelo excesso de estímulos no ambiente virtual.
"Em nenhum outro momento da história as pessoas que falam muito e não fazem nada foram tão visíveis e desempenharam um papel tão importante quanto nos tempos modernos." Nassim Taleb - Antifrágil
Existem vários outros medos que tem sido reforçados pelo excesso de exposição à informação negativa sobre tudo que pode acontecer de ruim, mas por agora quis falar sobre o medo de carregar uma mochila pesada.
Mas dentro do excesso de informação podem surgir informações válidas, pois a experiência sempre suplanta a teoria e há uma informação já consolidada que mencionei no início desta reflexão: "...um ser humano saudável não poderia carregar mais que 10% a 15% do seu peso nas costas."
"O peso máximo varia conforme os pesquisadores entre 7% e 20% do peso corporal, havendo um consenso maior para a proporção de 10%."
Uma boa mochila moderna (agora, sim, vamos agradecer a modernidade) está projetada para transferir 70% ou mais do peso para a área da cintura através da "barrigueira". Por isso o Adnan carregou numa boa mais de 33% do seu peso numa mochila, porque a mochila transferia 70% dos 33% para a cintura!!! No meu caso quando bem regulada a mochila correspondia a 7,5kg nas costas e ombros, restando 17,5kg na cintura.
Poderia também argumentar sobre os inúmeros dados históricos sobre como nossos ancestrais carregavam mais peso. Mesmo uma mãe hoje em dia consegue carregar seus filhos "no colo" até um peso bem considerável sem muita "ergonomia", mas vamos ficar nos 10% do nosso peso nas costas com as mochilas corretas.
Além disso, devido a nossa baixa atividade física (se comparados aos nossos antepassados) é quase indispensável complementar as atividades em trilhas com algumas atividades físicas notoriamente terapêuticas que trabalham nosso equilíbrio, flexibilidade e força como yoga, natação, musculação, Pilates,...
Uma ressalva: não sou "especialista" no assunto e também existem algumas condições mais graves que podem comprometer sua saúde física, mas deixei aqui a minha experiência vivencial apoiada por alguns fatos e experiências alheias. Não há garantia de que você não se machuque carregando uma mochila pesada, assim como não há garantia que você não se machuque deixando de correr alguns riscos na vida.
"Montaigne, sobretudo um sintetizador dos autores clássicos, encheu seus Ensaios com inúmeros relatos: perguntaram a um lacedemônio o que o levara a ter uma vida longeva: ele respondeu: "Ignoro a medicina." Nassim Taleb - Antifrágil
Você está mesmo disposto a abrir mão de uma aventura, de uma verdadeira satisfação pessoal, de uma experiência de crescimento, de uma vida plena por medo do peso da mochila?
O que tem mais importância: Uma vida de peso ou o peso da mochila?
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